A decisão

Laiz Colosovski

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Assim que Flora encontrou uma traça entre os livros velhos de sua mãe, soube que deveria tomar uma decisão.

A rua estava vazia naquela manhã, e ela aproveitou para esgueirar-se pelo apertado corredor do segundo andar da pequena casa em que havia crescido, chegando até o escritório de Aine, sua mãe, onde sempre ficavam, desde antes de seu nascimento, os livros.

Não eram muitos. A casa era pequena, apesar de ter três quartos. Três pequenos quartos, no andar de cima, com um único pequeno banheiro compartilhado. Uma escada em caracol levava ao térreo, onde uma pequena sala dava vista para uma garagem, e depois para a rua. Como nunca tiveram carro, sua mãe havia construído ali, ao longo de anos, um pequeno jardim que, hoje, cobria quase toda a vista da janela da sala.

Ela se lembrava das plantas crescendo e ganhando corpo junto com ela durante a infância, e aprendeu a gostar da sombra que as folhagens projetavam através da janela, deixando o ambiente fresco mesmo com o sol a pino.

O maior cômodo da casa, sem dúvida, era a cozinha. Integrada com a sala, ela dava para um pequeno quintal ao fundo, cheio de plantas, temperos e até uma raquítica amoreira. A cozinha contava com uma extensa bancada que cobria duas das paredes e uma mesa de jantar de seis lugares, além de alguns armários embutidos para os eletrodomésticos e um bom espaço de circulação. Do seu centro, era possível ver toda a extensão do térreo do sobrado: do jardim da garagem até as folhas da amoreira no fundo do quintal. A cozinha era desproporcionalmente espaçosa em relação ao resto da casa, que parecia espremida entre os muros vizinhos.

Aquele sobrado da infância de Flora tinha uma arquitetura muito peculiar que parecia ter sido feita sob medida para acomodar tudo o que ela e Aine precisavam: as formas, as tigelas, a farinha, o fermento e o chocolate das receitas cotidianas de sua mãe doceira ocupavam toda a extensão das bancadas; enquanto seus lápis de cor, brinquedos, papéis, adesivos e fitas de criança se espalhavam pela mesa de jantar.

Ambas foram crescendo em silêncio entre as plantas do pequeno jardim da garagem e a amoreira raquítica, com cheiro de algum tempero desconhecido. Muitas vezes, o aroma do manjericão ou do alecrim se misturava ao cheiro dos doces que sua mãe fabricava e ao perfume da roupa recém-lavada, que secava ao sol logo ali, na soleira da porta da cozinha, por falta de espaço no quintal.

Sua mãe vivia suja de farinha. Eventualmente, tinha manteiga nas mãos e suor no rosto. Era uma pessoa calada, trabalhava muito e falava pouco, mas nem sempre parecia triste. Desde pequena, Flora gostava de pensar em Aine como uma planta dessas bastante resistentes que florescem com poucos recursos, mas, quando são malcuidadas, murcham e perdem a cor em silêncio. E Flora gostava de pensar em si mesma como um poderoso adubo.

Por isso, sentiu-se especialmente feliz quando Aine começou a lhe dar pequenas tarefas para que ela ajudasse na casa e na produção dos doces. Mesmo quando se distraía, cumpria quase todas, e desenvolveu um gosto especial por cuidar das plantas e dos pequenos insetos que nelas viviam. Não à toa, tornou-se botânica.

Além das tarefas, que iam aumentando de complexidade à medida que Flora crescia e passava a entender mais sobre si e o mundo, uma atividade específica acabou ganhando lugar no coração de Flora: a de tirar o pó dos livros à noite junto com Aine.

Duas vezes por semana, ambas se fechavam no pequeno quartinho que servia de escritório e puxavam das três estantes de madeira todos os livros, um por um, tirando o pó, conversando sobre eles, contando histórias. Quando criança, Flora gostava dessa atividade, sobretudo, pois podia passar da hora de dormir duas vezes na semana. Depois, passou a gostar ainda mais quando começou a ler e compreender as páginas de texto.

Justamente por ter cultivado um gosto especial pelo hábito de limpar capas e lombadas, Flora sabia, quando encontrou uma traça no meio dos livros, que deveria tomar uma decisão.

Não via sua mãe há algum tempo. Não que tivessem uma relação ruim depois de Flora ter se tornado adulta, muito pelo contrário. Às vezes, uma camada de pó cobria as coisas, e isso era tudo. Olhando a traça presa à lombada do livro, Flora lembrou-se vagamente de uma conversa que Aine costumava ter com ela, geralmente antes de dormir, na qual aparecia a palavra “evanescer”.

Evanescer é morrer, mãe?

Não, filha. Esvanecer é evaporar. Sumir, mas continuar sempre presente, diluída nas coisas.

Então, você vai sumir?

Sim, filha. Um dia, eu vou sumir. Evanescer. E você estará grande e forte o bastante para conseguir tomar suas próprias decisões, portanto, não precisa se preocupar com isso agora.

Flora colocou o livro de volta em seu lugar na estante, decidindo não retirar dele a traça que o corroía. Pela última vez, bateu atrás de si a porta do escritório e, como que arrastada por uma sensação incômoda, cruzou o pequeno corredor e desceu a escada em caracol sabendo que não era mais permitido a ela voltar ao andar superior. Ela havia decidido.

Era início de tarde e ela colheu algumas folhas de amoreira para fazer um chá. Limpou a fina camada de poeira que cobria o fogão e esperou a água ferver, observando a secura das plantas no quintal, que pareciam pedir água há dias.

Levou sua xícara de chá para a sala e sorveu o líquido lentamente, observando as sombras que as plantas da garagem faziam ao vento durante a tarde. Não pensava em nada, pois não havia o que pensar sobre uma decisão já tomada. Compreendia sua mãe, sim. Sempre se compreenderam.

Quando o sol da tarde começou a cair, decidiu levar a xícara até a pia da cozinha, mas percebeu que não tinha mais acesso aquele cômodo desproporcionalmente grande em relação ao restante da casa. Podia ver as bancadas, a mesa de jantar e até a pia, mas não conseguia mais deslocar-se até ela.

Deixou a xícara de chá sobre a mesa de apoio ao lado do sofá e colocou-se de pé. Esticando o olhar, conseguiu ver, com algum esforço, alguns galhos da raquítica amoreira, que acenavam ao vento, em despedida. Fechou a cortina da sala e saiu pela porta da frente, sabendo que não poderia mais voltar.

Tudo ali estava evanescendo.

LAIZ COLOSOVSKI nasceu e cresceu na Zona Leste de São Paulo. É mestre em Letras pela Universidade de São Paulo e atua como editora, revisora e preparadora de textos educacionais. Escreve desde muito jovem e tem se dedicado cada vez mais à literatura. Participa da coletânea de contos Retratos da vida em quarentena, publicada pela editora Elefante. Em 2020, publicou Janeiro — Microcontos de forma independente. Conheça o trabalho da autora aqui.

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