Bafo antipático

Gabriela Malta

cassandra
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Abro a porta o menos possível. O guarda-roupa sem os ternos. A coleção de gravatas e as calças, cuidadosamente passadas e penduradas de forma a não fazer vincos; desaparecidas. A gaveta das cuecas; vaga. Sou possuída por uma espécie de tempestade de neve que arrebenta as outras três gavetas e as portas dos armários. Olho pros destroços espalhados pelo chão. Quem é essa? Quem é essa? Quem é essa? Tudo destruído. Tento me recompor no vazio quando o quarto se enche de ausência.

Cambaleio até o banheiro com uma mão na testa e a outra apertando o coração esmagado pelas vértebras. Ainda sinto o cheiro do pós-barba. Eita, ele vai voltar, penso. Sua mesquinhez faz questão de repartir até a porcelana trincada pelas mudanças de endereços durante esses dezessete anos. É provável que volte ainda hoje pra recolher o desodorante, o perfume Azzaro e a escova de dentes.

Sinto o frescor do hálito ainda na escova. Passo a língua pelas cerdas. Sugo minha própria saliva. A maciez desliza pelo rosto trazendo a sensação de quando ele me lambia pra me provocar com o visgo de baba. Arrasto pelo pescoço imitando as cosquinhas de uma barba por fazer. Esfrego nos mamilos até que atinjam a cor açaí-pitomba. Os bicos eletrizados pinicam o pinguelo na calcinha. Fico sem nada. Nada de roupa e nem de homem ao meu lado. Vai custar pra me habituar a ser mulher avulsa. A haste desliza pelo meu corpo. Traça um mapa verniz que cruza minha barriga e desce pelos pentelhos. Roço a abençoada nos grandes lábios e com ela ralo o grelo uma, duas, três vezes; esfrego-esfrego-esfrego. A boca se abre. Esqueço de fechá-la por um tempo e sou pega pela dor que trava minha mandíbula. Enfio o cabo dentro de mim. Uma sucessão de vaivéns até me ferir. O corpo se contorce quando experimento alargar o talho do rabo. Ân-ân-ân o eco me devolve ân-ân-ân. Calma, Ednéia. Calma, Ednéia. Digo em voz alta pra me fazer companhia e respirar melhor. As carnes se afrouxam e o gozo tapa meus ouvidos. Me recolho ao estado de quem cala.

Soco os restos dele dentro da necessaire, inclusive a escova. Ele guardará o bafo antipático de xibiu nos dentes.

GABRIELA MALTA é carioca e reside em Maceió (AL). Casada, mãe de filho adolescente, psicóloga e servidora do MPT/AL. Participa de Antologias desde 2020. Finalista do Prêmio Off Flip de Literatura: Megera mal domada (Poesia, 2023) e Quanto vale o sal das lágrimas (Conto, 2022). Menção honrosa 2º Concurso Literário Pintura das Palavras: Um desconhecido par de havaianas (Conto/2022). Conheça o trabalho da autora aqui.

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