Espaço EscreViventes

Uma parceria ‘cassandra’ e coletivo EscreViventes

cassandra
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Circular

Mariana Bortolotti

movimentos giratórios s u c e s s i v o s

⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀vai e vem

volta e vai

⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀vem e volta

⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀gira

gira ⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀gira

⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀gira

⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ex
⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀pl
⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀ode

a seiva verte pela fenda
floresce orquídea
em seu doce aroma matinal
pétalas finas transparecem
delicadeza e potência

amarras e folhas ao vento

Mariana Bortolotti é natural de Vitória, no Espírito Santo, e graduada em Direito na UFES. É feminista e apaixonada pela literatura e todo o universo que a envolve, especialmente a poesia. Adora participar de clubes de leitura e de escrita, sendo integrante do coletivo EscreViventes. Sonha publicar seus escritos e espalhar letras & palavras & versos por aí. Conheça o trabalho da autora aqui.

Ciclo d’água

Priscilla Pinheiro

— E aí, Dona Tereza, a Beatriz disse que a senhora ia chegar na casa que era dela hoje, então queria saber se posso ir aí pra ajudar a arrumar as coisas.- — Dona Tereza o quê, já disse que pode chamar só de Tereza, sou dona de nada não.
— Tá certo, é… Tereza, mas você quer ajuda?
— Não, pode ficar tranquilo, viu? A Bia disse que amanhã vem aqui e, além do mais, eu não quero atrapalhar a mudança de vocês. Deve tá uma correria aí também, né?
— Tá, sim, mas então depois eu vou com ela aí pra ver como ficou tudo antes de a gente partir pra São Paulo. Qualquer coisa é só chamar esse seu genro aqui, viu?
— Pode deixar, Ítalo, obrigada, meu filho!
Tereza desliga o celular e logo olha pra casa que agora vai tomar de conta.
Coloca Maria Bethânia na vitrola,
Quem me leva os meus fantasmas? Acompanha a canção enquanto
tira o pó dos móveis, varre o chão,
borrifa álcool no azulejo, esfrega o pano,
derrama o desinfetante de lavanda no piso e
prepara o almoço.
Passa o tempo.
Vai pra cama
e pega a meada de linha
rosa
verde
bordô
segue o caminho do fio e recomeça o crochê.

A campainha toca.
— Mãe?
— Bia, você já veio!
— Queria ver se tava tudo bem, mas pelo visto nem precisava, né?
— Ah, Bia, você sabe como a sua mãe é. Gosto de tudo nos trinques.
— É, eu sei.
— Vou fazer um café pra gente.
Bia olha ao redor.
O chapéu do pai pendurado na parede
como ele costumava fazer quando chegava do sertão
O porta-retrato do casamento deles perto da entrada
O par de cadeiras de balanço que a mãe fez questão de trazer
pra dar mais vida à sala.
Por alguns segundos, Bia quase se sentiu na casa em que foi criada
lá no meio do mato, no interior do Ceará.
— Bia, minha filha, você tá pálida. Deixa eu ver. Tá gelada!
— Ah, deve ser só aperreio com a viagem, mãe.
— Vai dar tudo certo, filha, teu marido é um homem bom, e vocês vão ser felizes em São Paulo.
— Mas a senhora não pode ficar sozinha aqui.
— Sozinha? Olha o tanto de vizinho que passa pelo elevador e lá embaixo, nunca tinha visto tanta gente junta.
— Ah, eu sei, mãe, a senhora não tá mais tão longe das coisas, mas é injusto eu partir logo agora que você tá aqui.
— Não se preocupe comigo, não, vá cuidar da sua vida, que a sua mãe aqui sempre soube se virar e vai continuar assim até morrer.
— A senhora sente falta do pai?
— Acho que não tanto como era antes, eu quase não lembro dele.
Bia percebe os olhos-banheira da mãe
a água querendo escapar pelos cantos.
— Ah, mãe, esse pão na chapa com café tá tão bom. Posso ir pra qualquer lugar e não encontro um lanche assim em canto nenhum do mundo.
As duas riem.
— Mãe, vamo dar uma volta?
— Mas olha o tanto de coisa que eu ainda tenho que arrumar.
— Você tem que sair um pouco, não pode ficar só em casa. Quero te mostrar o que tem aqui por perto.

— É tão bom andar, né, deu pra espairecer.
— Sabia que você ia gostar, mãe. Daqui pro fim de semana eu volto! Beijo!
As duas se abraçam e se despedem.
O porteiro acena para Tereza.
— Que lindeza essas margaridas, combinam com a senhora.
Tereza, envergonhada, sorri e logo devolve o aceno com as mãos.
Ao entrar no elevador e dar de cara com o espelho,
olha admirada para as flores
e para o seu rosto.
Passa a mão no cabelo.
Chega ao andar do apartamento e procura um vidro
um vaso
uma louça
qualquer coisa bonita
para encher d´água
e mergulhar os frágeis caules das flores
o sol começa a se pôr
a janela avisa que mais um dia se vai
Tereza olha e lembra do sertão
com o horizonte infinito de laranja
rosa amarelo vermelho roxo azul
Aproveita que já tá com o seu melhor vestido e desce
lá embaixo tem uma vista bonita também
tem grama, banco
o céu todo aberto
Ela senta um pedaço
e olha as nuvens
se mexendo condensadas
acompanhando o tempo
o canto dos pássaros
no ritmo do vento que veste os coqueiros
distraída
não percebe
os pingos d´água
o barulho de gotejo
que escorrega no cabelo
molha a pele dos olhos
cai no vestido
os bicos dos peitos se mostrando
os pés regados
a chuva começa a engrossar e Tereza aperreada
levanta pra voltar pro apartamento
vê que a passagem pelo salão de festas está fechada
e que pode se molhar ainda mais se for
chega a menina da vizinha
se solta da mão da mãe
e pega a mão de Tereza
as duas começam a rodar
a mãe olha aquela situação e ri
Tereza também começa a rir
a menina se solta e inventa uma dança
as três então se envolvem nesse encontro, tiram as amarras dos sapatos
mexem as pontas dos dedos
balançam as pernas
agarram as nucas com as mãos
a performance da alma
os ombros derretendo
arrastam os pés na grama do canto no concreto
bailam com as copas das árvores
que passeiam cheias e dançantes pelo ar
jogando sementes de querença
tocam os seus quadris e joelhos
e fazem o movimento circular das luas
com os bambolês invisíveis
que rodopiam pelo corpo todo
ativando moléculas sem nome
liberando água muita água
e sonhos que tinham sido esquecidos
envoltas e libertas pela chuva e pela noite que continua a cair
cheias de pingos
de um acesso de desejo-vida
lembram que são donas
inteiramente donas
de si.

Priscilla Pinheiro nasceu em Fortaleza, no Ceará, em 1993. É formada em publicidade pela UFC e é mestranda em comunicação pela mesma instituição. Trabalha como redatora e produtora de conteúdo freelancer. Tem a escrita como um lugar de experimentação para se conhecer mais e descobrir o que a envolve com coração e olhos mais atentos. Conheça o trabalho da autora aqui, aqui e aqui.

Febre noturna

Jenny Rugeroni

No fim das contas, para mim você é só uma fotografia e uma voz. Me parece que seus olhos são verdes, mas não dá para ter certeza; talvez sejam cor de mel. Você tem cabelos escuros e pele clara, barba por fazer, uma boca que dá vontade de morder. Nunca gostei muito de barba, mas por algum motivo ela combina com você; o conjunto de características é atraente. Vejo um sorriso radiante de juventude, mas, até onde sei, a imagem que você usa no perfil pode ser de vinte anos atrás. Desconheço a sua altura ou o seu porte físico. Nem ao menos sei se tem trinta e cinco anos ou se tem cinquenta. Pelo vocabulário que você usa, arriscaria dizer que está mais perto dos cinquenta. Sua voz é cheia de nuances, preocupada, indignada, sensual. Definitivamente, é a voz de um homem maduro.

Lá fora, a pandemia continua fazendo vítimas. Aqui, trabalhamos em condições massacrantes: doze, catorze horas por dia, o tempo todo à disposição da empresa para compensar o benefício de poder ficar em casa. E a tecnologia permite que pessoas de cidades diferentes façam parte da mesma equipe. Mais que colegas de trabalho, somos companheiros de luta. Começou assim, com um desabafo sobre as exigências impossíveis que temos que cumprir. Em que momento você passou a chamar no meu celular pessoal? A pergunta tímida: posso te ligar? Você está ocupada? Sempre nos mesmos horários. Deduzo que é quando sua mulher não está por perto. Como você consegue trabalhar ouvindo música nesse volume? Sua predileção por rock dos anos 80 reforça minhas deduções de que você não é um garoto. Fico ainda mais intrigada. Entre nós, uma distância de trinta quilômetros e nossa integridade.

Você está sempre se desculpando pelas mínimas coisas, sem necessidade. Digo a mim mesma: como os homens são bobos, por qualquer gentileza ficam se derretendo. No mesmo instante em que penso nisso, meu coração se enche de ternura. E eu? Não estou me derretendo também pelos mínimos gestos seus? Fiquei sem dormir só porque você me mandou um coração. Foi uma confirmação de que você também me deseja, ou pelo menos me vê como mulher. É um jogo perigoso e eu vou avançando, esperando o seu próximo movimento. No fim das contas, somos animais movidos a hormônios. Nas madrugadas me entrego à fantasia, imaginando um beijo quente nessa sua boca. Mas o dia amanhece e volto a ser eu mesma, esposa e mãe, aquela em quem todos confiam. Não vai acontecer nada, meu amor. Meu amor? Em pensamento eu te chamo assim e não tinha percebido.

Não consigo parar de pensar em meu marido. Não consigo parar de pensar em você. Nossas conversas foram ficando longas e cheias de intimidades. Besteirinhas, às vezes alguma maledicência sobre outros colegas, sempre deixando escapar que você gosta de sexo e que é muito viril. Outro dia você deu a entender que as coisas não andam tão bem em casa. Fiquei em silêncio. Seria muito doloroso, uma forma de traição quase, dizer que meu marido é mais velho que eu. Alguns anos atrás, era divertido. As vivências dele me encantavam; a compatibilidade entre a mulher de trinta anos e o homem de quarenta e quatro parecia perfeita. Hoje, apesar do descompasso, ainda existe algum amor entre a mulher de quarenta e oito e o homem de sessenta e dois.

Fico pensando nas possibilidades. Um dia haverá uma reunião presencial em alguma cidade fora do nosso caminho. Você vai passar por aqui e me dar carona. Com seu jeito tímido, vai me contar que sonhou comigo um dia desses. Eu vou querer saber o que aconteceu no sonho. Você vai dar uma risadinha e dizer que não pode contar. Vou ficar curiosa, insistir, e você vai dizer que não teve culpa de nada, mas a gente estava fazendo amor. Vou suspirar. Quero saber mais detalhes, foi bom? Foi maravilhoso. Você vai falar baixinho que morre de tesão por mim, e vou fingir que não sabia de nada. Agora fiquei com vontade. É, então vou precisar te aliviar um pouco. Você vai parar em alguma estrada de terra e reclinar o banco do carro. Vamos combinar: será um dia só, a vida continua, ninguém fica sabendo se a gente não contar. Eu estarei com um vestido bem solto; já faço tudo de caso pensado. Vou sentar no seu colo e abrir os botões da sua camisa, me esfregar na sua pele, enfiar a língua na sua boca. Você vai puxar os meus quadris para baixo, vou te sentir cada vez mais fundo dentro de mim. E vamos chegar atrasados na reunião, porque o trânsito estava terrível. Durante o dia todo eu vou sentir o seu prazer escorrendo pelas minhas pernas.

Fica combinado assim, não é? Vai ser um dia só, e ficaremos com as lembranças, uma fonte de equilíbrio e autoestima. Eu fico inventando boas intenções. Você sofre no trabalho, quero te fazer sentir melhor. Por que não posso ser sua amiga? Estou me iludindo, nunca daria certo. Loucura pensar que meia hora num quarto de motel poderia aplacar uma sede dessas. Seria uma tragédia. Para você e para mim.

O dia amanhece. Estou inteira outra vez, o sol me devolve a realidade. Acabou, não vai acontecer nada. Você não quer e eu também não. Estou curada: sou aquela em quem todos confiam. Vou preparar o café. Antes que a febre me leve de volta para a cama, incapaz de raciocinar.

Não se trata de medo. Se meu marido descobrir, não fará nada que me prejudique. Mas vai sofrer muito, isso eu sei. Acontece que eu nunca iria magoar aquele que segura minha mão e me distrai dos pesadelos.

Somos mesmo animais movidos a hormônios? Me recuso a acreditar. Somos capazes de fazer escolhas. Vou envelhecer ao lado dele, foi o que jurei. Na saúde e na doença. Com o tempo, o desejo por você vai se tornar uma lembrança agradável. Vou sorrir e pensar que eu era mesmo louca, mas que foi melhor assim.

Porque é apenas desejo.

Você é apenas uma voz e uma fotografia.

E não há nada por trás do sorriso radiante que eu vejo em seu rosto.

Jenny Rugeroni é bancária, formada em Comércio Exterior e mãe de dois filhos adultos. Vive com a família e catorze gatos na região da Serra da Mantiqueira, onde a natureza é uma fonte de inspiração. Vencedora de mais de trinta prêmios literários, é autora dos romances A Herdeira do Silêncio, Um Céu de Estrelas Curiosas e O Ano em que não Choveu, além de diversos contos e crônicas. Conheça o trabalho da autora aqui e aqui.

Nado guiado

Luciana Moraes

1

Veja a madrepérola
perdida a(o) sair da
concha
Aperta nossas mãos
e desce até chegar
no espaço inesgotável
Nada com os peixes
sem censura
⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀ (espuma)
há ventura em repetir
trechos de elos extremos
de pulsação em lume

2

Aqui, nada com outras mãos
Aperta o inesgotável com
a movência dos peixes
Borbulha e desce ao longo
do espaço
⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀ sem censura

3

Embaralha certos
⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀ conceitos
que prendem os sentidos
⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀ da carne
e deixa ser ventura
⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀ sem retorno
aquilo que é
⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀ cachoeira
mas lembre, corpo, onde há
teu lume
⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀ e recorde onde está
o ritmo
⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀ nos extremos da pulsação
repetida
e esqueça os trechos e versos
que se apagam
pelas ruas
sem
saída.

Luciana Moraes (1993) é poeta carioca, graduada em Letras pela Unirio. Atualmente, integra a equipe do portal Fazia Poesia eo coletivo EscreViventes e atua como revisora literária. Participou do coletivo Oficina Experimental de Poesia (2017–2018). Tem poemas publicados em revistas como Mallarmargens, Capivara, Aboio, Caxangá e Torquato. Está presente em alguns projetos poéticos e antologias. Tentei chegar aqui com estas mãos é o seu livro de estreia. Se vê como aprendiz da vida e do teatro. Conheça o trabalho da autora aqui e aqui.

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