Se Tudo Der Certo, Talvez Eu Fique Feliz

Hanna Karolline Ferreira

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Acho que estou indo, a passos lentos, na direção dos meus antigos pensamentos. Já não suporto fazer mais nada. Durmo e acordo cansada. Me afundando em livros para escapar da realidade. Resistindo à vodca e aos cigarros, por hora. O aniversário de minha prima se aproxima e, logo em seguida, vem o Natal; e depois o fim de ano, Réveillon: a virada, a contagem, os fogos. Não suporto os fogos. À meia-noite vem aquela sensação de estranheza, uma espécie de “e agora?”; pelo menos foi assim nos anos anteriores.

Na virada dos meus dez anos, passada no apartamento do David, em Copacabana, lembro até hoje de sentir essa estranheza, esse tédio, essa incompreensão do sentimento que todos pareciam ter, menos eu; a euforia, o ânimo, expectativas lá no céu, mais altas do que todo o barulho dos fogos. No apartamento, na Princesa Isabel, os fogos pareciam bombas infindáveis, coloquei as mãos nos ouvidos e me senti aliviada quando acabaram; apenas uns poucos remanescentes, esporádicos, insistindo no barulho. Minha prima e eu estávamos sozinhas; minha tia e David tinham ido beber e comemorar a comemoração dos adultos enquanto nós crianças ficáramos sós, zapeando na TV a cabo. Coincidentemente naquela noite passou o filme Hanna, com a Saoirse Ronan, e senti que pelo menos algo divertido estava acontecendo.

No filme, a Hanna loira e magricela de quatorze anos é uma assassina profissional, um bebê criado para matar, que cresceu e, agora, precisa matar aqueles que querem capturá-la, só para descobrir, no final, que o pai que a criou na verdade está por trás de tudo. Muito previsível, mas na época me pareceu incrível. Tem uma cena em que a protagonista adolescente beija a amiga que fez na estrada, viajando por Marrocos (que curiosamente, anos depois, descobri ser a mesma atriz que cresceu e fez uma série britânica que gostei muito na adolescência). Essa cena nunca saiu da minha cabeça.

Naquela noite de Réveillon também, quando minha tia e David voltaram com taças de champanhe em mãos e sorrisos alegres, zapeando os canais após o término do filme, passamos por um canal proibido para menores desbloqueado. Uma mulher branca de seios enormes e gemendo absurdamente alto apareceu na tela e fiquei apenas olhando enquanto minha tia tirava o controle da mão de minha prima e trocava de canal até parar num canal seguro.

“Namorar pelado” era a expressão que eu entendia do que mais tarde eu descobriria ser sexo e pornografia. Eu já sabia, entretanto, que era algo que não deveríamos ver nem falar, muito menos fazer. Devo ter aprendido com todas as vezes que alguma cena de pessoas sem roupa aparecia em algum filme de terror que eu assistia com minha tia e ela colocava as mãos sobre meus olhos (só nesses momentos, nunca se importando com as mortes sanguinolentas). Ou devo ter aprendido no episódio em que brinquei de namorar pelado com o Ken e a Barbie — não lembro quantos anos tinha, entre cinco e dez — , e minha bisavó abriu a porta do quarto e me deu uma bronca, gritando alto para minha tia que eu estava “fazendo coisa feia” com os bonecos (mas, sinceramente, não tenho certeza se ela gritou para minha tia ou se estava gritando comigo; e acho bastante curioso eu ter fechado a porta do quarto para fazer algo inédito, como se eu soubesse intimamente que era errado ou minimamente arriscado).

Foi uma virada de ano cheia de descobertas aquela que passamos no apartamento do David. Me pergunto se ele ainda está vivo, se está bem. Deve ter uns oitenta anos agora. Na época em que ele saía com minha tia, ele já tinha mais de quarenta, já parecia velho e tinha um filho adulto que, anos depois, vendo as fotos, pensei que parecia ter entre vinte e cinco e trinta anos; ou seja, David não parecia novo como um pai, mas também não era tão velho como um avô, mas era velho. Talvez beirasse os cinquenta. Minha tia estava na casa dos vinte quando o conheceu, vinte e seis, por aí. Era muito bonita, porém grosseira demais quando estava sóbria; carinhosa em momentos muito específicos. Desde que me entendo por gente ela reclama de tudo e todos e sempre me pareceu cansada, um pouco de saco cheio da vida e suas complicações. Ela discutia muito com David. Lembro de uma vez vê-lo agredi-la. Lembro da voz embargada dela dizendo para ele parar, como se tivesse se rendido. Eu não compreendia o que exatamente estava acontecendo, então não me assustei nem tive nenhuma reação, apenas assimilei e deixei guardado para a posterioridade.

Não sei por que estou pensando na minha tia e seu antigo namorado estadunidense algumas décadas mais velho que mantinha um relacionamento com minha tia e com outra mulher mais jovem, que minha tia chamava de “Preta”, ele está lá com a Preta. Minha tia é parda, a junção do meu avô negro retinto com minha vó branca; talvez David tivesse um tipo, gostasse de mulheres de cor. Seu filho era branco rosado de olhos azuis bem vivos e cabelo castanho claro, uma aparência tipicamente americana que, obviamente, era a junção de David com sua esposa ou ex-esposa (ou falecida esposa, quem sabe) branca de olhos claros; alguém para procriar e ter filhos durante os primeiros anos da vida adulta, enquanto acumula posses. Para, então, décadas depois, se mudar para um país tropical e se envolver com mulheres com a metade de sua idade, com benefícios para ambas as partes e uma sensação inebriante de liberdade e poder.

Por que será que não consigo sentir raiva do David? (E por que eu deveria sentir raiva, ou não, dele?) Por que sinto que minha tia não aproveitou a oportunidade ao mesmo tempo que sinto que ela nunca deveria ter se envolvido com ele, mesmo a proposta sendo tentadora, mesmo que isso significasse não ter patins nem TV a cabo, nem Playstation 2, nem computador e cama box, nem tantas outras coisas, experiências vividas e presentes aqui e ali? Um tudo ou nada. Mas minha tia escolheu um meio-termo, comeu pelas beiradas. Aproveitou o que pôde, como pôde, e depois foi embora antes que um homem a destruísse.

Pobre David; pobre tia.

Será que ainda dá tempo de encontrar um estrangeiro endinheirado para passar a virada de ano comigo, me dar presentes de Natal em troca de sexo mediano e beijar ao som de fogos em Copacabana?

Esta é uma vida verdadeiramente difícil. Ainda mais quando paro para pensar no quanto a vida de todas as mulheres ao meu redor foram marcadas negativamente pela passagem de um homem. Um rastro de lembranças áridas, uma mancha na história impossível de tirar com vinagre e bicarbonato. Ao mesmo tempo que sei que esses homens não definiram nada, não se tornaram nada, nunca foram especiais, apenas ferramentas para tapar os buracos de outros homens, homens anteriores: um pai, um irmão, um marido, uma falta.

Me pergunto o que seria de mim se eu fosse suficiente, se eu tivesse algo para oferecer a mim mesma. Quantos homens seriam necessários para preencher todos os pedaços que faltam? Quantos anos eu levaria para conseguir fazer o mesmo sozinha?

Quero que tudo seja novo. Que cada dia seja uma nova oportunidade de me fazer ser a pessoa que tanto procuro nos outros. Me fazer dizer as palavras que tanto quero ouvir do mundo. Me fazer viver de mãos dadas comigo mesma em reconciliação àqueles que partiram e se foram e me deixaram só. Este ano novo é um dia a mais em que posso correr e finalmente me alcançar. Mesmo que eu não sinta isso neste peito amortecido.

Meus pensamentos antigos vêm e vão, como ondas inconstantes de raiva e resignação. Estou cansada. Estou indo a passos lentos em direção ao que desconheço, mas não há outra alternativa senão contemplar a vastidão dos dias que se seguem, outro e mais outro, e mais outro. Sem meus vícios, é difícil. Gostaria de ter a solução dos meus problemas na palma da mão, esfregar uma lâmpada e fazer meus pedidos, apertar um botão e apagar o desânimo, as dúvidas e as frustrações. Queria que ultrapassar obstáculos fosse mamão com açúcar. Ter coragem e saciar a fome de vida real. O emprego, os amigos, o conhecimento. O turismo de mãos dadas com quem amo. A família que cultiva alegrias e se sente grata por existir. Todas as metas não cumpridas dos últimos vinte e quatro anos, contando. A dor, a dor, a dor de não ser nada além de carne humana; não comer nada além de palavras.

Talvez eu seja louca. (Mas quem se importa?)

Afinal, ainda estou aqui porque quero ver onde tudo isso vai dar.

Se tudo der certo, talvez eu fique feliz afinal.

HANNA KAROLLINE FERREIRA respira palavras, é leitora por necessidade e cria algumas faíscas para retribuir um pouco ao mundo a beleza que encontra pelo caminho. Tem vinte e quatro anos, nascida e criada na cidade do Rio de Janeiro, às vezes, chama a si mesma de escritora para acalentar o coração.

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